O crescimento desordenado e não sustentável dos últimos trinta anos em Aracaju destruiu quase toda a sua vegetação nativa, com modificações mais expressivas do que se costuma imaginar. A especulação imobiliária e a expansão urbana desenfreada degradaram mangues, restingas, dunas e praias. Áreas imensas foram, e continuam sendo, aterradas e ocupadas sistematicamente, de forma antiecológica e criminosa.
Muitas pessoas já devem ter ouvido falar que Aracaju era um mangue
Mas quantas pararam para pensar em quão verdadeira é essa afirmação? O “desenvolvimento” da cidade acabou por transformar o espaço que um dia era formado de argila, água e plantas em outro completamente diferente, composto por asfalto, esgoto e prédios. Em uma simples pesquisa na internet é possível encontrar grande número de fotos antigas do que hoje é o centro de Aracaju e da praia de Atalaia. Encontrar fotos antigas do bairro Jardins, por outro lado...
Há quem pense que a falta de documentação do bairro é uma estratégia da indústria imobiliária, para evitar que seja exposta a devastação a que foi submetida àquela região. Teorias conspiratórias à parte, por que fotografar uma região onde não há nada? Se hoje a capital cresce em direção aos bairros Mosqueiro e Aruana, há algumas décadas processo semelhante ocorreu com os bairros Salgado Filho, 13 de Julho e, mais recentemente, com o Jardins. Tirar fotos de mangue em uma época em que nem protótipos de câmera digital existiam seria nada além de desperdício.
Uma tradição de devastação
Quando a capital de Sergipe foi transferida de São Cristóvão para o então Povoado de Santo Antônio do Aracaju, seu território poderia ser comparado a uma ilha, cercada a leste pela praia, ao norte por mangues, a oeste por pântanos e ao sul por uma depressão inundável. Em busca do desenvolvimento a alternativa foi aterrar os pontos alagadiços.
Num primeiro momento, ainda no século XIX, os aterros possuíam um fim sanitário, com o intuito de combater a insalubridade reinante. Passados alguns anos, em princípio do século XX, as necessidades expansionistas da cidade culminaram no aterro indiscriminado de manguezais e apicuns (terrenos formados por sedimentos arenosos que margeiam as áreas de manguezal), que passaram a ser novos canteiros de obras.
A falta de conhecimento sobre a região no passado e as medidas tomadas na época justificavam-se pela urgência em tornar a região habitável, o que não ocorre hoje, uma vez que o conhecimento e a importância dos mangues são conhecidos, mas a falta de consciência e as cifras falam mais alto. A parte mais nobre da cidade que compreende os bairros Jardins, 13 de Julho, Garcia e arredores, são bons exemplos disso.
“O shopping e bairro Jardins não existiam, a área era coberta por manguezais. Existiam fazendas na região da Praça da Imprensa e próximas à Av. Hermes Fontes. Onde hoje é a Pizzaria Tarantella e a Escola Parque de Sergipe eram sedes das fazendas. Ainda vemos casas com arquitetura e resquícios de fazendas. No lugar da Nova Saneamento existiam apenas dunas com inúmeros pés de mangaba”, conta em entrevista ao Em Pauta UFS Maria Augusta Mudim Vargas, professora voluntária do Departamento de Geografia e dos Núcleos de Pós-Graduação em Geografia (NPGEO) e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) da Universidade Federal de Sergipe.
Crescimento da capital limitou o mangue, não o crontrário
Mangue é passado
O manguezal representa o último ecossistema que restou da cobertura vegetal nativa da Mata Atlântica de Sergipe, que hoje se encontra com 0,6% da área. A destruição avançou implacavelmente sobre essa importante vegetação, que em 1981 possuía 468,7 Km². Em 1984 a área estava reduzida a 262 Km². Em 1991, restavam somente 84 Km².
Em artigo publicado em 2006, as professoras Fernanda Cordeiro de Almeida e Eliane Oliveira de Lima Freire, também do Prodema, afirmaram que “esse tipo de ecossistema permite a fixação de terras e o controle da erosão, controle da linha da costa contra a invasão do mar, reduz a intensidade dos ventos (bosque de manguezal), permite a construção de numerosos nichos de molusco, peixes, crustáceos que buscam nesse ecossistema o abrigo contra predadores, alimentação, reprodução e crescimento”. Mas atualmente o que sobrou do mangue em Aracaju é devastado pelos esgotos.
Diversos pontos da capital são cortados por canais. Eles estão presentes desde os bairros periféricos até os mais “nobres”. Passamos pelos canais quase que diariamente, mas quantos de nós sabemos onde é lançado o esgoto recolhido? Um desses lugares é o Parque Ecológico do Tramandaí. Em uma das placas do parque pode-se ler “área de preservação do manguezal”. Que tipo de preservação é essa que transforma o mangue em esgoto a céu aberto?
Canal vem de diversos bairros; chega ao Jardins; segue pelo Parque Ecológico do Tramandaí; continua em meio ao mangue; chega até a Avenida Beira Mar; a atravessa por baixo; até que deságua na Praia 13 de Julho.
Lugar de contradições
Deve ser difícil encontrar outro lugar em Aracaju onde as crontadições estejam tão evidentes como na região do Tramandaí. O prédio residencial Mansão do Tramandaí faz homenagem ao ecossitema que ajudou a degradar. A lista de contribuidores é longa. Próximos à réstia de mangue estão supermercados, prédios, colégios, até mesmo uma igreja. Todos frenquentados especialmente pela elite.
Há alguns anos, depois do surgimento do hype do verde a prefeitura resolve intervir. Cercou o manguezal e chamou-o de reserva. A idéia era definir que o crescimento imobiliário não deveria ultrapassar aquele limite? A impressão que fica é a de que o intuito era definir que se podia crescer até aquele ponto. Parece a mesma coisa. Não é. A cerca ali não limita o crescimento, limita o mangue.
A diferença entre a destruição provocada ao longo dos anos na região e a que observamos hoje, principalmente através dos projetos da iniciativa privada, são os fins, a velocidade e o cinismo. Quanto ao Estado, este se esconde atrás das placas de “Preserve” e “Denuncie”, mas é ali que escoa o esgoto de boa parte da cidade. Destrói de forma mais lenta, mas ainda se destrói.
Ligamos para o 0800 que a Empresa Municipal de Serviços Urbanos (Emsurb) disponibiliza para denúncias e a resposta da atendente foi que só registram denúncias quanto ao descarte de lixo e aterro. “Para esgoto você tem que entrar em contato com a Adema”. Ligamos também para o atendimento à denúncias da Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema), mas não conseguimos contato. Enquanto isso o que resta de manguezal continua sendo destruído, mas afinal quem precisa dele?
Foto inicial postada por João Manuel em thread do Skys Craper City
Demais fotos por Iuri Max
Para saber mais: Atlas Digital da Biodiversidade Faunística dos Ecossistemas Aquáticos de Sergipe